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Cesariana a pedido, autonomia do paciente e conduta médica

 

por Erika Dantas e Ana Beatriz Martins

Um assunto polêmico quando se fala em autonomia do paciente é a possibilidade de escolha do tipo de parto pelas gestantes ou parturientes (aquelas que já estão em trabalho de parto), bem como sobre qual deve ser a conduta do médico diante de tal escolha.

É entendimento majoritário e pacificado pela comunidade médica mundial que o parto normal (realizado pela via vaginal), quando não há contraindicações médicas para sua realização, é mais benéfico para mãe e bebê, bem como traz menos riscos de complicações do que a cesárea (realizado pela via abdominal). Tendo isso em mente, a Organização Mundial da Saúde publicou recentemente novas recomendações para um trabalho de parto positivo e seguro¹, estimulando, dentre outras coisas, um pré-natal informativo e esclarecedor, companhia da parturiente durante o trabalho de parto, uso de fármacos e não fármacos2 para a atenuação da dor, etc.

Tendo em conta os maiores benefícios do parto normal e a constatação de que no Brasil eram realizadas muitas cesáreas em mulheres que poderiam ter tido parto pela via vaginal, começou uma ampla divulgação dos benefícios do parto normal, estimulando-se a sua realização, principalmente na rede pública, por meio de metas de diminuição das cesáreas realizadas no SUS.

Infelizmente, em alguns hospitais, esse incentivo ao parto normal acabou virando imposição, fazendo com que a mulher se sentisse tolhida de sua escolha acerca do tipo de parto a ser realizado. Por esse motivo, veio à tona discussões sobre cesárea a pedido pelas gestantes e parturientes, principalmente na rede pública.

A autonomia do paciente é intrínseca à sua dignidade e direito fundamental, razão pela qual deve ser, na medida do possível, respeitada. Falamos “na medida do possível” porque, conforme já discutimos amplamente em nossos posts (tanto no site como em redes sociais), a autonomia não é ilimitada ou absoluta, existindo limites e relativizações principalmente quando se trata de urgência/emergência ou quando há risco à saúde de terceiro.

Em relação às gestantes, a nova Resolução do CFM 2232/2019 estabeleceu que a recusa terapêutica (aqui entendemos que pode ser feita analogia em relação à recusa ao parto recomendado pelo obstetra) dessas pacientes deve ser analisada tendo em conta o binômio mãe/feto, levando-se em conta se a escolha da mãe não traz riscos à sua vida ou riscos elevados à saúde do bebê.

Tendo isso em mente, como deve o médico proceder quando a gestante escolhe o parto cesariano, mesmo tendo condições de realizar o parto normal?

O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 2144/2016, a qual está de acordo com a mencionada Resolução 2232 e com o Código de Ética Médica3, que estabelece que a gestante poderá, nos casos eletivos, optar pelo parto cesariano, desde que ela tenha sido devidamente esclarecida sobre os riscos e benefícios de ambos os tipos de parto, que tenha assinado um termo de consentimento livre e esclarecido elaborado com linguagem acessível e que, dentro dos riscos normais, só seja realizado após a 39ª semana de gestação4. Ainda, é ressaltado que o médico pode não concordar com a escolha da paciente e encaminhá-la para outro colega.

Ora, combinando essa Resolução com a que trata a 2232 que trata da recusa terapêutica, tem-se que a paciente pode se recusar a realizar o parto normal, ainda que com indicação médica, optando pela cesárea. Porém, a decisão deve ser tomada de forma esclarecida (sabendo a paciente de todos os riscos que estará passando), com termo de consentimento, após a 39ª semana e desde que não haja risco de morte para a mãe e o bebê. Ou seja, em partos de urgência ou emergência que tragam riscos elevados para a mãe, bebê ou ambos, ainda que com termo de consentimento assinado, o médico está autorizado a realizar o parto normal. Ainda, tendo em vista a realidade do sistema público de saúde brasileiro, importante ressaltar que os riscos da escolha pela cesárea podem estar na própria estrutura do hospital, que não possua, no momento do parto, condições adequadas para o procedimento cirúrgico, ocasião na qual entendemos que também pode ser realizado o parto normal.

Em relação à possibilidade de escolha do parto cesariano durante o trabalho de parto, discute-se se a mãe estaria plenamente capaz de escolher o melhor para ela com dor, ansiedade e nervosismo inerentes à situação. Entendemos que estar em trabalho de parto não transforma a mulher em incapaz durante o processo, mas que principalmente a dor intensa pode fazer com que a parturiente queira o parto abdominal no primeiro momento. Nesses casos, nossa opinião é que a melhor conduta é a avaliação individual pelo obstetra das condições da paciente e oferecimento de formas de amenizar a dor (fármacos ou não) caso não haja indicação de cesariana, conforme recomendações da Organização Mundial da Saúde.

Nos casos em que haja acolhimento da parturiente, oferecimento de meios de amenizar/retirar a sua dor e esclarecimento dos riscos5/benefícios por parte da equipe médica e mesmo assim a paciente deixe clara a sua vontade de fazer a cesárea, de acordo com a legislação vigente, entendemos que o médico deve respeitar sua vontade – desde que não haja riscos elevados para nenhuma das partes e que haja condições do hospital de realizar o procedimento cirúrgico (instrumentos, sala cirúrgica, anestesista, etc.).

Atualmente, no Estado de São Paulo, está vigente a Lei 17137/20196, a qual prevê que a parturiente tem direito de escolher pelo parto cesariana, desde que realizada após a 39ª semana e que tenha sido conscientizada pelos benefícios do parto normal e riscos da cesariana. A Lei exige também que haja assinatura de termo de consentimento e que o médico, caso não respeite a vontade da paciente, esclareça suas razões em prontuário. Ainda, declara que a parturiente tem direito à analgesia, farmacológica ou não, e que as maternidades devem deixar claro os direitos para as parturientes. Por fim, esclarece que a parturiente tem os mesmos direitos em relação à escolha pelo parto normal, se em condições clínicas para tanto.

Ainda que a Lei tenha ótimas intenções, visando assegurar a autonomia e dignidade da mulher, fato é que não se posicionou acerca dos casos em que os médicos avaliam que a cesárea pode trazer riscos graves para a saúde da mãe e do bebê, deixando margens à interpretações absolutas e ilimitadas sobre a autonomia da parturiente. Não foram tratados também os casos em que o hospital não possui meios de fornecer analgesia à paciente ou condições adequadas de realização da cesárea.

Por esses motivos, entendemos que em São Paulo, tendo em conta que a Lei mencionada já está em vigor, deve ser redobrada a atenção com relação aos desejos da paciente, entretanto, acreditamos que a Lei não revoga as Resoluções do CFM acerca das exceções em que o médico pode atuar contrariamente à vontade da gestante/parturiente (risco relevante à saúde do bebê, urgência/emergência com risco de morte da mãe/bebê ou risco à saúde de terceiros) tampouco retira o direito do médico de não realizar um procedimento que não concorda, encaminhando a paciente para outra pessoa ou, em casos de risco de morte sem outro médico disponível, de atuar conforme acredita ser o melhor para a paciente. Frisa-se também que em caso de eventual recusa em atender à vontade da paciente o médico deve anotar seus motivos detalhadamente em prontuário, bem como que todas as considerações acima devem ser obedecidas também para as gestantes/parturientes que desejam realizar o parto normal.

Conclui-se, portanto, que: a escolha sobre o tipo de parto é realizada idealmente em conjunto pela gestante e o médico, devendo sempre ser observado o que será melhor para mãe e para o bebê, esclarecendo todos os riscos e benefícios para a gestante, que deve estar apta a tomar uma decisão esclarecida. Ainda, todos os meios para amenizar a dor do parto devem estar disponíveis, a fim de evitar cesáreas a pedido em razão da forte dor inerente ao trabalho de parto. Por fim, quando todas as cautelas são observadas e a gestante opta por um parto diferente do que o recomendado para o seu caso específico, sua vontade deve ser respeitada em caso de viabilidade do parto solicitado, mas o médico pode atuar contrariamente ao desejo da paciente nos casos já exaustivamente explicados no presente artigo, bem como pode interromper sua atuação e encaminhar para outro colega que se sinta confortável atendendo ao pedido.

Notas de rodapé

1 http://febrasgo.mccann.health/childbirth_experience_2018.pdf

2  Por exemplo: banhos quentes, bola de pilates, métodos de respiração, etc.

3  Capítulo I – XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

4  Em consulta, o CREMESP editou o Parecer 107779 que estabelece que o médico, dentro da sua autonomia, não tem obrigação de realizar a cesariana exatamente quando se completa 39 semanas sem que haja nenhum sinal de trabalho de parto, indicação de possibilidade de sofrimento fetal ou algum outro risco. Esclareceu que a Resolução fala que a cesárea a pedido pode ser feita a partir da 39ª semana, dando margem para que seja realizada dias depois com algum sinal de que há indicação para a realização do parto.

5  A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia fez recentemente uma nota sobre a Lei 17137/2019 de São Paulo (que na época ainda era um projeto de lei) alertando aos maiores riscos na cesárea a pedido durante o trabalho de parto (https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/852-febrasgo-apoia-posicionamento-da-sogesp-em-relacao-ao-pl-435-2019)

6 O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO: Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei: Artigo 1º – A parturiente tem direito à cesariana a pedido, devendo ser respeitada em sua autonomia. § 1º – A cesariana a pedido da parturiente só será realizada a partir de 39 (trinta e nove) semanas de gestação, após ter a parturiente sido conscientizada e informada acerca dos benefícios do parto normal e dos riscos de sucessivas cesarianas. § 2º – A decisão deverá ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão. § 3º – Na eventualidade de a opção da parturiente pela cesariana não ser observada, ficará o médico obrigado a registrar as razões em prontuário. Artigo 2º – A parturiente que optar ter seu filho por parto normal, apresentando condições clínicas para tanto, também deverá ser respeitada em sua autonomia. Parágrafo único – Garante-se à parturiente o direito à analgesia, não farmacológica e farmacológica. Artigo 3º – Nas maternidades, nos hospitais que funcionam como maternidades e nas instituições afins, será afixada placa com os seguintes dizeres: “Constitui direito da parturiente escolher a via de parto, seja normal, seja cesariana (a partir de trinta e nove semanas de gestação)”. Artigo 4º – O médico sempre poderá, ao divergir da opção feita pela parturiente, encaminhá-la para outro profissional. Artigo 5º – As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias. Artigo 6º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Palácio dos Bandeirantes, 23 de agosto de 2019. JOÃO DORIA